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OS HOSPITAIS MEDIEVAIS DE LISBOA - ACTIVIDADE CLÍNICA

A medicina praticada no território durante o período germânico foi regulamentada pelo Código Visigótico, lei que se mostrava exigente para com o exercício do acto médico; o tratamento de um doente era ajustado previamente e o pagamento apenas se efectuava quando se obtinha eficácia do mesmo. Era atribuído ao médico a actividade de sangrar e sabe-se que que se praticavam operações às cataratas, a troco de 5 soldos visigóticos.[1] Para além dos actos médicos, no seu conceito actual, a arte de curar envolvia igualmente a trepanação e outros actos cirúrgicos, o uso de plantas com poderes terapêuticos ou mágicos, a utilização de relíquias de santos, o aproveitamento de águas termais e as rezas, como herança do período romano.
Na medicina árabe encontramos uma referência relacionada com os arredores de Lisboa: “... na região situada entre Lisboa e Sintra, encontram-se numa montanha, utilizada outrora como reduto fortificado, pedras judaicas que têm exatamente a forma de glandes. Estas pedras têm, entre outras propriedades, a de dissolver os cálculos da vesícula e do rim. Fazem-nas entrar também na composição de colírios.[2] Parece não ter havido no território português o conhecimento médico gerado no Al-Andalus das regiões que hoje pertencem a Espanha, nomeadamente Córdova; talvez devido à conquista cristã mais precoce, associada à arrebatadora destruição de toda a obra muçulmana que se encontrava pelo caminho dos conquistadores, o conhecimento médico se tenha também perdido. Certo é que os muçulmanos davam grande importância à astrologia, á uroscopia (observação da urina) e sobretudo às plantas medicinais. No entanto sabemos que Al-Zahrawi usou tinta para marcar as incisões na pele do doente, linha de cutgut (fabricada com intestino de animal) para suturas internas, talas gessadas para tratamento de fracturas, secção e laqueacção da artéria temporal para aliviar certo tipo de cefaleias, traqueostomia (orifício na traqueia permitindo entrada de ar), extracção de pólipos nasais com gancho, laqueacção de vasos sangrantes, redução de luxações do ombro, tiroidectomia (extracção de glândula tiroide), mastectomia (amputação da mama) para tratamento de cancro da mama e cirurgia de redução mamária, aplicação de fio de seda em cirurgia cosmética e aplicação do algodão em pensos cirúrgicos.[3]
O conhecimento árabe da medicina terá porventura sido aproveitado pelos frades cristãos que na Baixa Idade Média desenvolviam as artes médicas em Portugal. Estes religiosos eram ao tempo os senhores quase exclusivos do conhecimento, os guardiões das bibliotecas e os cultivadores das plantas medicinais dentro das cercas dos conventos.
A clínica medieval era realizada no domicílio, pelo que nenhum dos hospitais possuía médico privativo, sendo este chamado quando necessário. Os cuidados eram prestados por enfermeiros, albergueiros e hospitaleiros.[4] A prática médica não se restringia a tratar os ricos para obter honorários; pelo contrário, era a prática nos hospitais que contribuía para a fama do médico, tornando-o conhecido de modo a facilitar a sua contratação pelos doentes das classes mais abastadas.
A hierarquia médica encontrava-se bem determinada: no topo havia o Físico ou médico autêntico, alguns sendo especialistas de determinadas doenças; seguia-se o cirurgião e por fim o sangrador e o barbeiro, o qual também procedia a sangrias; na cauda hierárquica encontramos bruxos, curandeiros[5], parteiras e mestres de banho. Os físicos e os cirurgiões estavam autorizados a possuir livros de artes em hebraico, atestando a importância da civilização judaica nas ciências da saúde, sendo que muitos dos mais importantes médicos da época eram de origem judia. O médico era um indivíduo letrado e cientista, filósofo, astrólogo e teólogo em simultâneo.
A Astronomia, proveniente de conhecimentos árabes e judeus, estava dividida em Astrologia judiciária (utilizada para prognosticar o futuro) e Astrologia médica (para prognosticar a doença). Devido aos seus conhecimentos em astrologia (que se confundia com a astronomia), foram vários os médicos usados nos descobrimentos portugueses; sabemos que D. João II se fez rodear nestes assuntos por três conselheiros, dois dos quais médicos: Mestre José Vizinho e mestre Rodrigo.[6] Sabemos que Mestre José foi responsável por estudos cartográficos, segundo o que se encontra nas Notas manuscritas da biblioteca de Sevilha, atribuídas a Cristóvão Colombo e seu irmão Bartolomeu “Registei muitas vezes, navegando de Lisboa ao Sul, na Guiné, o caminho percorrido, como o costumam fazer os pilotos e os marinheiros. E depois tomei muitas vezes a altura do sol pelo quadrante e outros instrumentos e achei que os resultados concordavam com os de Alfragano (...) Isto mesmo achou mestre José, médico e astrólogo e muitos outros somente para isto enviados pelo sereníssimo rei de Portugal.” e “O sereníssimo Rei de Portugal enviou à Guiné, no ano de 1485, mestre José, seu médico e astrólogo, para saber a altura do sol em toda a Guiné (...)”.[7] Sabemos igualmente que na frota de Pedro Álvares Cabral, seguia Mestre João, físico e cirurgião, que escreveu uma carta a D. Manuel em 1 de Maio de 1500, anotando medições de latitude feitas com carta e astrolábio,[8] sendo igualmente o mais antigo documento conhecido onde se descreve a constelação em Cruz, mais tarde designada por Cruzeiro do Sul.
Nem só os médicos viviam da clínica; encontramos também outros responsáveis pela saúde no fim da época medieval em Lisboa; sabemos pelo Sumário que a Câmara da cidade também os empregava como seus funcionários, a saber: 3 provedores da saúde, 1 escrivão da saúde, 1 físico da peste e um outro físico.[9] Da mesma obra retiramos os números oficiais de “Gente de Ofícios que há em Lisboa” – 57 físicos, 60 cirurgiões e 46 boticários.[10] Terá algum significado estarem estas profissões nos três primeiros lugares da lista, à frente de mestres de escola (11), mercadores (582) e artistas (210)? Os leitores que façam a sua interpretação. Quanto a mulheres, encontramos 25 parteiras, 10 enfermeiras e 81 merceeiras.[11] Números semelhantes se acham descritos por outro autor no ano de 1552: 42 boticas, cada uma com mestre e criado (o actual ajudante de farmácia);[12] 5 tendas que não têm outro ofício senão tirar dentes;[13] 40 físicos e 40 cirurgiões.[14]
Em toda a Idade Média, o principal tratamento das doenças consistia na purificação da alma por actos religiosos e de contrição, tendo a Medicina e a Farmacologia um papel secundário. Os tratamentos, para além das orações, incluíam ainda o domínio sobre a ciência dos astros, receitas de mezinhas variadas, sangrias, purgas e actos cirúrgicos. A lepra e a peste foram as principais doenças contagiosas da época, mas eram frequentes as dermatites, as conjuntivites e cataratas, as cáries e dores de dentes, as diarreias e as febres. Na cirurgia, os abcessos e as feridas por arma branca, devido à sua frequência, eram facilmente tratados, com relativo êxito; conhecia-se já o escorbuto e a gangrena, como atesta a descrição do cerco a Sevilha feito pela frota de D. Fernando que tinha subido o rio “ho muj lomgo tempo que conthinuadamente alli jouverom, que foi huum anno e omze meses, passamdo mujta fame e frio e outras doores, fez que se perdeo mujta gente della; ca lhe cahiam os dentes, e os dedos dos pees e das maãos, e outras tribullaçooens que passavom, que seeria lomgo de dizer.”.[15] A obstetrícia ligava-se fortemente às superstições, à protecção religiosa, particularmente ao culto da Senhora do Ó e à astronomia; praticava-se o aborto e o parto prematuro quando existia perigo de vida para a grávida.
A peste foi um dos principais flagelos da Europa medieval; a ela se refere D. Duarte no seu livro Leal Conselheiro: ”Se não deve crer que a pestellença venha sempre por especial sentença do Senhor Deus,(...) a influência pode vir dos astros, (...) pela corrupção das águas” e podia vir por contagio[16]. Assistimos a uma epidemia no território nacional cerca de 1348 descrita numa crónica conventual como “durava na terra por espaço de três meses, e as mais das doenças eram levações (inchaços) que tinham nas virilhas e sob os braços[17]. Uma das melhores descrições do contexto social da doença, encontrei-a ao longo da escrita de Fernão Lopes, relacionada com o cerco de Lisboa imposto por D. João de Castela em 1384: “E depois que El-rei entrou no Reino e se vêu chegando contra Lisboa (...), começarom a morrer de pestelença alguns do arreal, das gentes de pequena condiçom. (...) E por esta razom se mudava El-Rei de uma aldeia pera outra (...) atá que vêu sua frota, e (...) começarom de morrer na frota. (...) E, nom embargando que dante assaz morressem, começou a se atear a pestelença tão bravamente em eles, assi per mar, côme per terra, que dia havia hi qie morriam cento, e cento e cincoenta, e duzentos (...) morrêrom mais de dous mil homens de armas, dos melhores que el-rei de Castela tinha, afora muitos capitães que nomear nom podemos.” Descreve ainda o cronista que, apesar da mortalidade entre os Castelhanos, nenhum português perecia, dentro ou no termo da cidade, afirmando que para tal maravilha não conseguia descortinar a causa[18].
Trataremos aqui um pouco à parte a lepra, “dor de gafem” ou Mal de S. Lázaro, flagelo europeu na Idade Média. Apesar de alguns historiadores afirmarem que na Idade Média esta doença não era tida como contagiosa, permitam-me que com eles discorde; faria algum sentido manter os doentes fora das cidades, em locais próprios de internamento a eles reservados, se tal se verificasse? Certamente que não. O que faz sentido é considerar a interpretação que estes doentes poderiam ser perigosos para a restante sociedade, embora talvez se ignorasse a via de contágio ou o grau de contagiosidade, sendo muito provável que outras doenças de pele fossem confundidas com lepra e condenadas aos mesmos métodos terapêuticos. A lepra seria ainda das poucas doenças crónicas da época, pois que a maioria das perturbações que hoje atingiram o apelido de “crónicas” na época não tinham tratamento eficaz e os doentes entrariam rapidamente em complicações conducentes à morte; esta cronicidade verificada na lepra, que poderia manter o doente vivo durante décadas, foi sem dúvida um dos motivos que levou à construção de locais próprios onde habitassem, com o mínimo de qualidade.
Em Portugal a doença não obedeceu à disseminação observada no resto da Europa, sendo a sua frequência muito menor, facto talvez devido a pouca participação portuguesa nas cruzadas na Terra Santa. Do mesmo modo, os gafos do nosso país não estavam sujeitos às apertadas regras de ostracismo que conhecemos na Europa Central e Médio Oriente; muitos dos doentes não eram isolados, podendo manter vida social, sendo que também não eram obrigados a assinalarem a sua presença na via pública; na generalidade os gafos podiam entrar nas cidades quando munidos de autorização para o efeito, apesar da existência de regras que proibiam estas deslocações, assim como existiam gafos “andantes do mundo” que não se encontravam internados em qualquer instituição[19]; temos conhecimento de casamentos de gafos, assim como de reis padecendo da doença que mantinham a sua actividade social. Talvez por esses motivos existiram poucas gafarias no país, quando comparamos com outros países europeus.
Resta-nos desenvolver um pouco a prática de actos cirúrgicos. A cirugia desenvolveu-se desde a Antiguidade em paralelo com a guerra, tratando fracturas e feridas, muitas vezes com êxito devido tanto à arte de tratar como à sábia prática de deixar passar o tempo até a natureza proceder à cicatrização. Conhecidas eram as práticas de trepanação desde a pré-história, a sutura de feridas e a aplicação de talas em fracturas referenciadas em papiros no antigo Egipto, a extracção de lanças e setas e a lavagem das feridas dos Gregos, a cauterização como processo de controlar a hemorragia.

Os fármacos necessários ao tratamento de cada enfermidade eram adquiridos em qualquer botica a expensas da casa, sendo que alguns dos hospitais, sobretudo os dos conventos, possuíam botica própria. Os abusos na prática por pessoas não habilitadas levaram a regulamentação no séc. XV, a qual determinava obrigatoriamente  que o candidato fosse examinado antes de lhe ser passada carta de boticário. As boticas estavam sujeitas a fiscalização pelos físicos e a sua prática fundamentava-se em tratados, a maioria dos quais de origem árabe.[20] As boticas de Lisboa localizavam-se sobretudo nas freguesias da Madalena e de São Julião (correspondentes à actual “Baixa” de Lisboa); eram lojas pequenas, medindo em média de duas a cinco varas (vara de cinco palmos) no seu maior comprimento.


[1] J. Leite de Vasconcellos, Medicina dos Lusitanos, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Médicos, Lisboa, 2008, p. 59
[2] Almunime Al-Himyari (1002 – 1085), citado por António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, 3ª ed. Caminho, Lisboa, 2008, p.47
[3] David W. Tschanz, Pioneer Physicians, Saudi Aramco Word, vol 62, nº 1, January/February 2011, Aramco Services Company, Houston, 2011, p. 34-39
[4] Fernando da Silva Correia, Os Velhos Hospitais da Lisboa Antiga, Revista Municipal nº 10, Câmara Municipal de Lisboa, 1941, p. 8
[5] A. H. De Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera dos Livros, 2010, p. 131
[6] A. Fontoura da Costa, A Marinharia dos Descobrimentos, Edições Culturais da Marinha, Lisboa, 1983, p. 14
[7] A. Fontoura da Costa, A Marinharia dos Descobrimentos, Edições Culturais da Marinha, Lisboa, 1983, p. 37
[8] A. Fontoura da Costa, A Marinharia dos Descobrimentos, Edições Culturais da Marinha, Lisboa, 1983, p. 120-121 e extratexto
[9] Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551 - Sumário (em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa), Livros Horizonte, 1987, p. 86
[10] Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551 - Sumário (em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa), Livros Horizonte, 1987, p. 94
[11] Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551 - Sumário (em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa), Livros Horizonte, 1987, p. 99-100
[12] João Brandão (de Buarcos), Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, Livros Horizonte, 1990, p. 185
[13] João Brandão (de Buarcos), Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, Livros Horizonte, 1990, p. 196
[14] João Brandão (de Buarcos), Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, Livros Horizonte, 1990, p. 202
[15] Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, Lisboa, Livraria Civilização, 1979, p. 111
[16] Carlos Manuel Vieira Reis, História da Medicina Militar Portuguesa, Edição da Revista Portuguesa de Medicina Militar, 1991, Fascículo II, vol. 39 (2-4), p. 132
[17] José Hermano Saraiva, História concisa de Portugal, Publicações Europa-América, 24ª ed., 2007, p. 101
[18] Fernão Lopes, Primeira parte da Crónica de D. João I, vol III, 2ª ed., Lisboa, Livrarias Aillaud & Bertrand, 1922, p. 153-157
[19] Rita Luis Sampaio da Nóvoa, A Casa de São Lázaro de Lisboa – Contributos para uma história das atitudes face à Doença (sécs. XIV – XV), dissertação de mestrado em história medieval, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, 2010, p. 62
[20] A. H. De Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa – aspectos da vida quotidiana, Lisboa, edições A Esfera dos Livros, 2010, p. 131-132

4 comentários:

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    1. Bom dia
      Poderei contactar por mail, se deixar aqui o seu endereço.
      Obrigada
      Crisdtina Moisão

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